Estava
em casa terminando meu almoço e o telefone toca com meu amigo Santanna pedindo
uma simples ajuda. Uma carona. Estava com dor e precisava ir ao médico. Se eu
estivesse disponível seria de grande ajuda.
Dois
meses se passaram e sua esposa me telefona no meio do dia, pedindo que eu fosse
ao hospital visitar meu amigo porque ele estava muito mal. Três dias depois
recebo a notícia de seu falecimento.
Não
vou entrar nos detalhes do processo que levou o querido Santanna ao término de
seu tempo aqui no plano terrestre. Não sei se seria capaz de escrever algo tão
duro. Três meses e meio se passaram e ainda sinto que ele vai aparecer,
telefonar e soltar sua metralhadora enciclopédica com assuntos atrás de
assuntos, conectando Beatles a Silvio Santos, passando por Genival Lacerda e
Iggy Pop.
Esse
telefonema não vai acontecer.
Quando
cheguei ao hospital em que Santanna estava internado após idas e vindas, de
fato ele jamais voltou a sua casa após aquela carona. Ao chegar sabia o que
precisava ser feito e como seria difícil aquilo tudo. Como dizer adeus ao maior
amigo que alguém poderia ter no mundo. E fazê-lo sem que ele soubesse o que eu
estava fazendo.
Até
o último instante Santanna acreditou que sairia dali bem, passaria por um tempo
se reestabelecendo, travaria uma luta dura contra o câncer e voltaríamos a
passar horas e horas e horas conversando generalidades. Santanna foi o maior
especialista em generalidades do mundo.
Conheci-o
em 1996. Eu com quinze anos e ele vinte. Um amigo em comum nos apresentou e
três anos depois eu já visitava-o sozinho, invadindo sua coleção de CDs e
biografias de roqueiros, com ênfase nos anos 1950, 1960 e tudo o que era
relativo aos Beatles.
Rapidamente
nos tornamos uma dupla. Escrevemos um Fanzine bimestral, apresentamos um
programa na extinta e pirata rádio Onda Verde FM, criamos um programa no
Youtube chamado Drops Rock que nunca deixou de fazer mesmo quando eu não tive
mais tempo e/ou disposição, escrevemos um livro sobre rock que nunca
publicamos, colaborávamos nos blogs um do outro, faltou ao meu casamento, foi à
minha primeira formatura, fomos a dois shows do Ira!, tiramos cem no karaokê
cantando have you ever seen the rain, estudamos inglês no finado CCAA do centro
de Guarulhos, fundamos um cursinho comunitário, ajudamos a fundar outro,
viajamos para lugares estranhos: Galeria do rock e Aparecida do Norte, nos
afastamos um pouco quando comecei a estudar Letras e ele Rádio e TV, me
convidou para ser padrinho de seu filho, brigava comigo e minha esposa quando
não o convidávamos para os rolês, trabalhamos juntos na escola pública, fomos a
três aniversários consecutivos dos Falcões Moto Clube de Guarulhos e vimos por três
anos seguidos os mesmos shows. Nunca nos distanciamos de fato. Não lembro de
ter ficado mais de um mês sem conversar com ele durante todo este tempo.
Brigamos
por diversos motivos, mas sempre o telefone disparava e sua voz com um grito de
guerra reforçando o “A” do meu nome Maaaaaaaauro...
Difícil
resumir uma amizade assim.
Quando
um amigo tão amigo se vai, vai com ele uma porção de situações que jamais se
repetirão. Conversas que nunca mais acontecerão. Segredos que deixam de fazer
sentido. Saudosismo compartilhado por duas pessoas ainda é saudosismo, quando
se fica sozinho lembrando de situações que aconteceram há dez, quinze, vinte
anos algo deixa de ser bonito, passa a ser apenas triste.
Não
vou ser piegas. É muito bom lembrar do Santanna: cartunista, radialista,
escritor, professor, fotógrafo, intelectual, astrólogo, fã número 1 dos Beatles
(notem que é a terceira vez que cito Beatles nesta crônica (quarta porque
acrescentei mais um nesta linha)). Como ainda dizia, é muito bom lembrar do
Santanna, mas é muito ruim saber que aquela carona foi o último favor que me
pediu, que não vou mais telefonar para ele no meio da tarde chamando-o para vir
em casa tomar um café ou uma cerveja e conversar trivialidades: livros, filmes,
desenho animado, rock, pop, TV, política, comportamento, tudo, conversávamos
sobre tudo.
A quem estou enganando? Eram
monólogos na maior parte do tempo e quem conhecia o Santanna sabe do que estou
falando. Ele não parava de falar um instante. E se nunca aprendi a desenhar, escrever,
criar trocadilhos, ser tão carismático, tentando imitá-lo aprendi a ser um
pouco mais falastrão, tornei-me quem sou.
Perto
dele eu era um mudo. Mas era muito bom estar em silêncio e aprender com quem
sabia mais sobre muito e quase tudo, e com a humildade de falar que era eu o
intelectual. Se há algo de intelectual em mim é porque ao ler seus textos, ver
seus desenhos, ouvir seus discos e seus monólogos me deixei influenciar tanto
pela figura do Fábio que devo muito do que sou a estes vinte e três anos de
convivência.
A
última frase que me falou quando nos despedimos na UTI em que ele bem
debilitado esperava o momento de poder voltar para o quarto, ou ser transferido
para um outro hospital mais especializado foi: “Vai dar tudo certo!”
Eu
concordei e disse que tudo daria certo.
Três dias depois nossa amizade
mudou de plano. No dia seguinte foi a coisa mais difícil pela qual passei na
vida e também não quero me aprofundar sobre isso. E se escrevo sobre o Fábio é
porque sempre que algo está apertando aqui dentro, escrever me ajuda a
organizar as ideias, escrever me acalma, põe um pouco de ordem no caos.
Na manhã de seu funeral sua
esposa perguntou-me qual canção dos Beatles ele mais gostava para o momento de
sua despedida. Senti que aquele pedido era uma homenagem ao Fábio e o
reconhecimento de sua esposa a minha grande amizade com seu marido.
Quando ouvi George Harrison
cantando “Here comes the sun, it’s all right... it’s been a long cold lonely
winter” tive a certeza de que o inverno pode e será muito frio. Solitário até.
Mas tenho certeza de que o sol surgirá, enfim, o gelo derrete e o sorriso
precisa voltar aos rostos.
Santanna acreditava em outros
planos. Eu acreditava em Santanna.
“Vai dar tudo certo.”