quarta-feira, 19 de novembro de 2014

Caminho do Mar, Bukowski e Senhor das Moscas

                Sempre me achei uma pessoa boa, já frequentei igrejas, cultos esotéricos, estudei de forma autodidata magia, ciência, ciências sociais,  ajudo no que posso, não deixo minha mão esquerda saber o que a direita faz, e assim por diante. Mas descobri que existe um pequeno grande monstro em cada um de nós. Em mim, especificamente.
                Estávamos eu e Glory, minha querida esposa, rumando ao litoral. Noite chuvosa, trânsito agitado, pouca visibilidade, vidros do carro embaçados, vontade de ir ao banheiro, mas muita vontade de chegar ao apartamento, deitar numa cama que não era a nossa, e dormir, para aproveitar todo o sábado torrando a pele em frente ao mar; mesmo descendo sob chuva, afinal somos paulistas e paulistas sempre acreditam num horizonte lindo descendo a Serra.
                Foi uma semana exaustiva de trabalho, tanto para mim quanto para ela que, por vezes, flagrei cochilando no banco do passageiro enquanto eu engatava ad infinitum primeira e segunda marchas.
                No caminho eu me lembrava da semana que tivera, as dificuldades da profissão, meu novo livro “A cabeça do objeto” e sua recepção: muitos me falando sobre a minha desesperança no ser humano e de como eu precisava ter em mim alguma mensagem de alegria, meu livro era a minha voz e meus leitores não percebiam essa voz nos meus textos. Sempre fui irônico em relação à condição humana e o que viam era niilismo, não sarcasmo.
Ninguém via em mim o monstro que gritava pelo foco narrativo.
                Descia o Caminho do Mar vagarosamente pensando em como encontrar uma felicidade, aquela semente a virar árvore pronta a metamorfosear-se em texto e desesperado com sentimentos assim pois sempre os achei cafonas, mas de nada adiantaria escrever coisas que trouxessem apenas tristeza, enfim, seria mais um escritor maldito: as pessoas não querem se ver como mesquinhas, finitas, perdidas e monstruosas. Por isso leem Zíbia Gaspareto, J.K. Rowling, Stephanie Meyer e afins... E eu seria maldito e não lido, já que escrevo independente de editoras e me inspiro em Bukowski, Lima Barreto, Nelson Rodrigues e outras drogas.
                Meus horizontes levam a outros lugares. Não sou o escritor das pessoas felizes e rasas e talvez seja este o problema de viver numa época infestada pela oca felicidade e bondade cotidiana. As pessoas estão ligadas no piloto automática nem entendem sobre o que estão lendo, ou assistindo, não estão nem aí para o que estão olhando.
                Certa feita fui à uma exposição de arte e tive essa epifania, um pouco atrasada, li que vários outros a tiveram antes de mim: olhando para as pessoas que olhavam os quadros percebi que passavam em frente aos mesmo como quem passa por prateleira de supermercado procurando a margarina sem sal, a maionese light, o óleo de girassol, o açúcar mascavo.
                Morto o olho repleto de estímulos, anestesiado, o olho o espelho da alma; como esperar que na alma se aproxime Robert Frost, Stendhal, Lispector, Guimarães Rosa, Gogol, Philip Roth?
                Nosso olho assassinado pelo cinema que nos apresenta vinte e quatro imagens por segundo dando-nos a ilusão de imagem, castrando nossa capacidade de concentração em letras como estas que, provavelmente poucos ou ninguém lerá. Sempre há uma esperança, não sou tão niilista, por isso escrevo.
                Não lembro a quem pertence este pensamento mas concordo: “O caráter se faz em comunidade, a genialidade na solidão”.
Talvez a nossa época seja a mais paradoxal de todas: estamos solitários em meio a uma porção de gente interconectada, até o partido político que se apresenta como terceira via para o Brasil se auto proclama “Rede”. Situações que não podem ser ignoradas, mas tudo em dia é, ainda mais o ser humano. E com este comentário retorno ao verdadeiro motivo da minha fala de hoje: descobri o monstro em mim, ele conversou comigo.
                Chegando ao apartamento onde ficaríamos, a Glory foi abrir o portão para que eu pudesse entrar com o carro, a chuva havia cessado por um instante, estava escuro, passava das onze da noite, rua deserta, cidade litorânea, a mesma que apareceu nos jornais vespertinos devido ao linchamento de uma bruxa (em pleno século XXI) (e no ocidente) (e há alguns metros de onde estávamos) me assustei quando um homem se aproximou da Glory e pôs a mão na cintura. Não pensei que poderia ser um assalto, saí para ajudá-la a abrir o portão e o sujeito se dirigiu a mim ainda com a mão na cintura:
                -Oi casal, me ajuda com algum dinheiro.
                Só então pensei no assalto, estava acontecendo. Comigo pela terceira vez: num ônibus quando um tiro foi disparado pelo assaltante e no Brás onde trabalhava e uma arma foi encostada na minha barriga. A segunda da Glory:  fora subtraída da bolsa com todos os os documentos há alguns metros de casa. Desta vez compartilharíamos o trauma.
                O homem insistia enquanto eu tomava a chave e começava a forçar a fechadura que lutava para não ser aberta.
                -Me dá um dinheiro, tô precisando de ajuda.
                Ao dizer percebi que a qualquer momento puxaria a arma que se avolumava na cintura. Tinha que evitar essa situação: eu, minha esposa, um ladrão, uma arma, longe de casa, à noite...
                Enfiei a mão no bolso e busquei a carteira enquanto o homem metia a dele na cintura e me mostrava o tamanho do tumor que saltava do cinto e caía como banha para perto de sua virilha. Não era uma arma que escondia, mas um câncer.
                Dei ao pobre diabo dez reais e o vi dar as costas. Abri o portão ainda tenso e no apartamento tive uma noite tranquila de sono e sonhos, no dia seguinte a praia estava linda, passei a semana feliz e relaxado. Só no fim deste mês voltei a pensar no assunto, então fui perceber que eu ficara aliviado e feliz porque um homem tinha câncer.
                Demorei alguns dias para que a realidade me atingisse. Quem dera fosse tão instantâneo quanto as personagens da Clarice que despertam com uma mexa de cabelo grisalho, um ovo quebrando a escorrer pela sacola do mercado, um cego mascando chiclete, uma barata...
Para despertar para a minha loucura tive de esperar por quase um mês e já não lembro do rosto do homem, nem de sua figura (se era gordo, alto, branco ou careca, idade aproximada). Tudo o que lembro é que tinha câncer e que isto causou em mim uma sensação tão grande de euforia que eu quis rir.
                Sou um monstro?.
               No “Senhor das moscas” eu não seria o coitadinho, talvez o grande vilão, nunca o bonzinho da história.
                Talvez eu precise ler um pouco desses autores da moda que despertam sentimentos bons em nós, ou que escondem as coisas ruins de nosso interior.
Perto do abismo o abismo te olha, ao gritar ele responde.
Meu medo não é a queda, meu medo é estar mais oco que este eco.

                                                                                                                           Mauro Marcel
                                

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