Há épocas em que o mundo parece girar não pelo eixo da Terra, mas pelo eixo moral de quem acha que sabe como devemos viver. Dias Gomes entendia isso melhor do que ninguém: suas irmãs carolas, com véu na cabeça e dedo em riste, patrulhavam a vida alheia com a convicção de quem acredita ter linha direta com o Altíssimo. Eram guardiãs dos bons costumes — ou do que restava deles.
Hoje, trocamos o véu pelo avatar no Instagram, o rosário pelos threads indignados, mas o espírito é o mesmo: estamos cercados de novas irmãs cajazeiras. Só que agora, em vez de água benta, elas carregam emojis, hashtags e uma chuva de links que prometem salvar a humanidade de si mesma. O diabo, coitado, virou figurante; quem faz o inferno são os próprios fiéis.
A cultura woke nasceu anunciando liberdade, justiça, equidade. E, veja bem, não é que esses desejos sejam ruins. Pelo contrário, quem, em sã consciência, votaria contra a ideia de um mundo mais justo? O problema é que algo se perdeu no caminho — como aquele bilhete amassado no fundo do bolso que a gente só acha quando já não serve pra nada. O sonho virou dogma. A causa, catecismo. E os fiéis, sem perceber, transformaram-se em sacerdotes improvisados dessa nova religião sem nome , mas agindo como a única digna de existir.
Há quem diga que vivemos um período de caça às bruxas. Discordo: as bruxas sabiam quem eram. Os jovens de hoje caçam fantasmas — sombras projetadas por medos, culpas e narrativas que eles próprios inventam. Vasculham o passado à procura de monstros e, quando os encontram, sentem-se heróis de uma cruzada moral que jamais terminará. Em 1620 queimavam mulheres; em 2025 queimam reputações. A fogueira continua acesa — apenas mudou de combustível.
São carolas sem perceber. Beatas ateias. Pregadores que acham que sermão não é sermão quando começa com “eu só queria problematizar”. Querem orientar o que devemos comer, vestir, falar, desejar, consumir e — por que não? — até o que devemos sentir diante de um filme. Porque opinião própria virou um item suspeito, quase contrabandeado. Somos obrigados a nos indignar, a odiar, a amar, a desmonetizar, somos obrigados a deixar de seguir o humorista sem graça, não por não ser engraçado, mas por ele não pregar a mesma fé que os donos da palavra.
Dias Gomes morreria rindo — ou talvez chorando — ao ver que, no fim das contas, o moralismo é como mofo: muda de canto, mas não desaparece. Hoje ele brota nas entrelinhas de uma postagem sobre inclusão; amanhã aparece travestido de indignação contra um personagem de 1973. Moralismo é uma erva daninha: basta a chuva certa e o terreno fértil, e lá está ele, se multiplicando como se o mundo dependesse disso.
Enquanto isso, nós, os espectadores dessa comédia de erros, seguimos caminhando entre dogmas que não escolhemos. Antigamente, errar era humano; hoje é imperdoável. E quem tenta viver sem se converter a essa nova religião — comunista, woke, espiritual ou seja lá qual for — passa o dia pulando fogueiras invisíveis, desviando de sermões que voam pela internet como mosquitos no verão.
No fundo, tudo o que eu queria era um pouco do antigo silêncio das tardes de domingo. Mas até isso parece proibido: sempre há alguém pronto para nos ensinar — com a bondade de um inquisidor — a maneira correta de existir.
E assim seguimos, entre carolas modernas e sermões progressistas, tentando encontrar o milagre: o milagre de viver sem precisar ser santo de nenhuma fé.
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