quinta-feira, 10 de março de 2016

Feminazi, aborto e paradoxos

               
              Sou um libertário – a favor da liberdade – mas sou contra o aborto exceto nos casos previstos pela lei brasileira, com algumas ressalvas aos casos de estupro.
                E sendo assim há em mim uma bagunça ideológica muito grande e discorro sobre o assunto com a finalidade de pôr um pouco de ordem neste caos.
                Acredito que a interrupção voluntária de uma gestação vá muito além do que debatem os dois polos da contenda: de um lado os religiosos ultra conservadores e do outro as feminazi ultra-mega-master-pseudo liberais.
                Neste embate ideológico há uma gama de cores muito maiores que o simples preto no branco, branco no preto, ou preto ou branco. Há espaço para vários arco-íris.
                Como a minha forma de pensar, por exemplo, contraditória como eu e ofensiva às duas partes supracitadas, aliás, como é o hábito deste blog.
                Vou tentar me fazer entender.
                No Brasil de cultura historicamente católica e conservadora o aborto sempre foi visto com péssimos olhos, não apenas ele, como todas as escolhas das mulheres. Lembrando que há registros históricos facilmente encontrados de casos de estupros a filhas em que os estupradores deviam indenizar os pais das moças, não raro crianças, pelo ato cometido. A mulher vista como uma propriedade, um bem, reificada e, logo, longe das decisões que competem à própria vida.
                Também numa cultura católica a valorização do sofrimento e da pobreza atingem patamares insustentáveis aos padrões intelectuais do século XXI, é inadmissível que se conceba uma criança apenas por aceitação ao fardo dado sobre a mulher pelo sagrado.
                Este tipo de cultura levou o Brasil, e não só ele, à proibição de mulheres na escola, proibição de voto, proibição de inserção no mercado de trabalho, proibição de aborto, proibição atrás de proibição.
                Muitas ficaram num passado não tão distante: o divórcio por exemplo.
                Outras persistem: o aborto.
                Assim sendo é importante o debate sobre o assunto, um debate que não ignora o passado opressor, não apenas do Brasil, mas todo o mundo em relação à mulher e de como suas escolhas foram demonizadas ao longo da história.
                E mais, no Brasil há uma questão social enorme envolvida neste processo. As mulheres ricas, filhas da classe média, média alta, alta, muito alta e altíssima têm o direito às clínicas de aborto nacionais e estrangeiras.
                Pagando o pacote turístico completo e viajando pra Miami em clínicas alvas, onde aspiram o feto sem mais perguntas. Talvez na Europa, ou quem sabe em alguma pequena ilha da Oceania, à beira do mar, perto do hotel five stars.
                Longe da realidade das vítimas de clínicas clandestinas ocultadas pela mancha urbana das grandes cidades, com pedaços de feto deixados para trás, ou lá dentro. Danos irreparáveis ao sistema reprodutor da vítima. Sim, vítima. Pois não ignoro, como faz os que são cegamente contrários à prática abortiva, que essas mulheres são levadas a este ponto por forças incontroláveis e poderosas.
                Forças com os argumentos ridículos tipo: “quem mandou transar”, “agora tem que criar”, “sua vida estragou”, “perdeu a virgindade, e agora?”. Isto e outras bizarrices do gênero.
                Em suma, as ricas podem o que as pobres não podem por uma simples questão financeira. Algo que é deixado de lado nas discussões sérias, que poderiam fazer algo pela questão, mas soterrado por um peso ideológico histórico não faz mudanças fundamentais onde, de fato, deveriam.
                Houve avanços? Enormes. Se levar em conta a cultura conservadora da nação tupiniquim grandiosos avanços.
                O que não faz diferença para a mulher que foi estuprada e não encontrou um único local seguro, público e acolhedor para realizar o aborto. Para esse tipo de situação o atraso é enorme.
                 Autonomia da mulher em relação a seu corpo é o ponto central da discussão, mas inserida em uma sociedade opressora deveria se discutir a autonomia da mulher em todos os aspectos da vida.
                Porém, todavia, entretanto, como explicitado já no primeiro parágrafo deste ensaio: não sou a favor do aborto.
                E não virei com o argumento de que a interrupção da gravidez causa um trauma enorme no corpo da mulher pois levar a gestação até o fim também o causa.
                E não virei com discurso fácil da valorização da vida criada por deus. Vou começar falando da vida mesmo, a sua valorização, mas isto em uma perspectiva científica.
                Num universo em que jamais houve provas de vida fora do planeta terra cada vida é uma fonte inestimável de possibilidades. Cada ser em potência é grandioso pelo simples fato de estar vivo. O que dirá uma forma inteligente, e ainda vida consciente.
                Incrível como os defensores do aborto conseguem valorizar a raridade de um coala, um panda e no que se refere à vida humana o total desprezo, como se um embrião, universo afora fosse o mais trivial dos seres.
                Também não posso ignorar em mim a força da minha criação em um universo cultural judaico cristão. Seria muito hipócrita de minha parte ignorar este sentimento que parece nativo, mas sei ter sido enraizado pela criação conservadora por que passam os nascidos nas periferias das cidades brasileiras. Claro que há um universo de exceções, mas isto é assunto para outro momento.
                Portanto, consigo conviver muito bem com essa contradição dentro de mim: sou contra o aborto, mas sou claramente a favor da liberdade das mulheres em o realizar.
                Paradoxal? Sim. Como tudo em mim, em ti, em nós.
                E fico triste com essas buscas por uma coerência própria dos personagens de Dumas; a vida é muito mais complexa.
                Há, por exemplo, a possibilidade de se entregar a criança para adoção. Há métodos contraceptivos. Há a universalização do ensino.
                Nos casos em que a lei brasileira o aprova é um caminho do meio. Por mim iria mais longe: liberação total, mesmo não sendo um dos que o apoiaria em escala pessoal.
                E nunca se deve ignorar o poder da religiosidade.
                O que é apenas um procedimento médico para uma pessoa de pensamento mais científico, para um religioso é assassinato.
                O pensamento de que seria possível moldar a sociedade da noite para o dia é algo por demais estúpido. Uma porta aberta hoje e soluções a longo prazo devem ser pensadas.
                O Brasil não é os Estados Unidos, nem a Argentina. Há as especificidades e a necessidade de respeitá-las junto a um processo educacional ativo e de qualidade.
                Sempre a educação como solução para os problemas.
                Assim as pessoas verão que nem todos os que são contra o aborto são reacionários misóginos. E nem todos os que são a favor são liberais assassinas feminazis.
                O diálogo teria mais qualidade. O debate engrandeceria.

                O Brasil seria um lugar melhor.

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